Carta de Alfredo Aveline publicada no livro “Nuvens Cristalinas em Luar de Prata” de Wilson Paranhos, editado em 1994 

Prezado Wilson,

Gostaria muito de já ter te respondido antes. Conforme solicitado, enviamos os exemplares da revista Bodisatva para a Marisa e o Wilmar Galbarino, aqui em Porto Alegre, bem como para a Nilda e o Victor Pritsch, lá em Rio Pardo.

As atividades relacionadas à vinda de S.S. o Dalai Lama ao Brasil e a ultimação dos detalhes para sua recepção em Porto Alegre tomaram todas as nossas energias, todo o tempo e toda a nossa capacidade de imaginação. Mas foi muito bom, extraordinário mesmo. Na próxima edição da revista Bodisatva vamos relatar um pouco isso.

A vinda do monge Tokuda a Porto Alegre agora em abril foi também muito boa. Batizou mais de 20 crianças, recebeu o “rakussu” (manto simbólico preparatório para a ordenação) de aproximadamente 10 pessoas para as quais deu nome religioso e ofereceu a cerimônia de refúgio. O monge Tokuda deu uma palestra na UFRGS com auditório cheio e muita participação.

Kahner San está passando bem agora, sua recuperação foi muito rápida, após a operação. No próximo 17 de julho deverá cumprir seus 81 anos.

Meu primeiro contato com o Zen Budismo ocorreu em 1972, através de Celso Marques. Nosso contato principal era na área de ecologia e proteção ambiental. A AGAPAN, da qual Celso é hoje o Presidente, estava tomando força. Meu interesse principal na área espiritual se situava no Hinduísmo e na Hatha Yoga. 

Durante dez anos o Zen Budismo ficou latente e um pouco distante. Na época eu o achava um pouco frio, afastado, sem brilho, um pouco triste, um tanto formal. Lembro que me perguntava: “E o amor, entra aonde no Budismo?…” Também a grande preocupação pela salvação e pela eliminação do sofrimento, por escapar dos ciclos de mortes-e-renascimentos, era algo um pouco estranho para mim, pois todo esse desejo parecia enfim basear-se na noção de um ego, no desejo de um ego escapar, no desejo de “alguém” libertar-se do sofrimento sendo a personalidade individual algo ilusório, este objetivo me parecia um pouco limitado demais. Assim, seguia praticando meditação segundo a abordagem Hinduísta.

Passei o ano de 1981 praticamente recolhido em casa (de onde saía para dar minhas aulas na Universidade e cumprir o essencial), mergulhado emocionalmente no Bhagavad-Gita, na obra e vida de Gandhi e de São Francisco de Assis. Isso levou-me ao ponto de pedir uma licença na Universidade e ir morar no meu sítio, juntamente com outros amigos, fundando uma comunidade rural, o “Grupo Comunitário Rodeio Bonito”, isto como meio de poder aprofundar mais essas experiências. Corria o ano de 1982 e fiquei lá até o segundo semestre de 1985 quando retornei à Universidade e passei a aprofundar o estudo da Teoria Quântica e na Complementariedade de Niels Bohr. O “Grupo Comunitário” terminara meio ano antes. 

O que efetivamente me tocou, no Budismo, foi o “vazio”, a “Vacuidade”. Minha sensibilidade veio por intermédio da atividade como físico, atividade da busca das “essências últimas”. O Budismo, através dos Sutras do Coração, do Lankavatara e, especialmente do Surangama Sutra e de vários ensinamentos do mestre Doguen, oferecia uma visão completamente nova, abissalmente profunda, extraordinariamente vasta e até mesmo assustadora. Lembrou-me muito a manifestação transcendental de Krishna, no Hinduísmo, devorando a tudo e a todos. Nessa época aproximei-me da Raja Yoga, da Brahma Kumaris (sempre me apresentando como budista) e cheguei a viajar à Alemanha, Inglaterra e outros países, onde tive contato com vários centros e participei, como convidado de um encontro internacional sobre o diálogo “Espiritualidade e Ciência” em Colônia (Alemanha), e lá apresentei uma palestra intitulada “O Surangama Sutra e a Teoria Quântica”.

Com essa compreensão, busquei aprofundar a visão budista, aproximei-me mais do professor Celso Marques e passei a praticar zazen em sua casa. Lá conheci Khaner San. Avançando por aí, ao natural, passamos a fazer sesshins em Rodeio Bonito (Município de Taquara, RS), um ou dois por ano durante 1986, 1987 e 1988. Também o Centro de Estudos Budistas (C.E.B.) passou a existir em uma fase inicial pelos textos todos de estudo que eu havia traduzido e continuava traduzindo. Passávamos a estudar em grupo na casa do Celso.

A intensificação dessas práticas levou à necessidade de outros locais de meditação e estudo e também ao contato com outros centros e outras pessoas ligadas ao Dharma. Tínhamos a sensação de estarmos isolados, talvez sem companheiros de sangha no Brasil. Pouco mesmo sabíamos dos outros Estados. Com alguns endereços no bolso, Cinthia e eu fomos a São Paulo tentar contato com a Sociedade Soto Zen no bairro da Liberdade, bem como fazer contato com o Zen Coreano, do Grupo do Sidney Ramos Seabra que já havia recebido no Brasil, por duas vezes, o grande mestre coreano Zen Budista Dae San Sanin. Lá fizemos contato também, pela primeira vez, com a professora Lia Diskin e com Lincoln Berkeley (do Centro Budista Tibetano Vajra Dhatu, de Halifax, no Canadá) e, pela primeira vez, ficamos sabendo da ideia de trazer Sua Santidade o Dalai Lama ao Brasil. Imediatamente, pedimos para participar dessas atividades, para ajudar. 

Algum tempo depois participei em São Paulo de um retiro dirigido pela Ani-la Rinchen Wangmo, discípula do Venerável Kalu Rinpoche, que me abriu a perspectiva do Budismo Tibetano.

Em setembro, tivemos a visita de Daiju San (Cristiano Bitti), abade do mosteiro do Morro da Vargem, no Espírito Santo, que veio dirigir um sesshin e nos ensinar a fazer o “rakussu” para a ordenação futura. Em novembro/dezembro desse ano de 1988, Cinthia e eu assistimos ao retiro oferecido por S.E. Jamgon Kongtrul, no Rio, onde tomamos refúgio pela primeira vez e também recebemos nossos nomes religiosos tibetanos na linhagem Karma Kagyú. As palestras de S.E. foram todas anotadas e, três das quatro, já foram publicadas em edições da Revista Bodisatva.

A última palestra anotada será publicada no próximo número da Bodisatva. Estes textos nos ajudaram (a todos aqui no Sul) muito a compreender que seu aspecto “mágico” também se reduz ao “vazio” e a criar uma ponte mental e realizar uma desobstrução que se materializou recentemente na vinda de S.S. o Dalai Lama a Porto Alegre. Sem essa desobstrução não teríamos a convicção e a compreensão da importância deste evento e não teríamos trabalhado e insistido a ponto de recebê-lo.

Em janeiro de 1989 tomamos refúgio Soto Zen, fizemos o “rakussu”, recebemos nossos nomes religiosos com o grande mestre Soto Zen Narazaki Roshi, no mosteiro de Ibiraçu, dirigido por Kogaku Daiju San (Cristiano Bitti). Aqui no Sul, onze pessoas foram iniciadas como leigos budistas. Havia mais de cem pessoas no evento, entre elas, Lia Diskin, Odete Lara e também o Lincoln Berkeley (tenho a lista completa dos nomes). A pessoa mais jovem foi a Viviane Sabbado, que foi iniciada aos 15 anos de idade. Daqui do sul, também foram iniciados como leigos: Celso Marques, Eleara Manfredi, Cinthia Sabbado (hoje, Cinthia Sabbado Aveline), João Graff, Maria da Paz Ceppas de Carvalho Peixoto, Maria Carbonell Alvarez, José Fonseca e Suzana Rodrigues. Ofereceram também o “rakussu” porém, sem estarem presentes, a Tânia Lohman (que o deu ao Kahner San) e o Maurício Alves Sabbado. Passamos sete dias em Ibiraçú. Nessa época quando o mestre Narazaki Roshi esteve também em São Paulo, recebeu em encontro especial a Kahner San. 

A vinda de Narazaki Roshi ao Brasil foi um grande vento na história do Dharma. Para que tenhas ideia, tivemos uma viagem do mestre Narazaki de helicóptero até uma comunidade japonesa no interior da Bahia, a convite do Governo do Estado do Espírito Santo. O helicóptero foi ao mosteiro buscá-lo. Foi a primeira vez que o mestre Narazaki veio ao Ocidente e ele só havia saído anteriormente do Japão para fazer uma viagem à Índia.

Neste mesmo ano de 1989, tivemos novamente sesshins. Em 1988, tivemos um que durou oito dias, no Rodeio Bonito. Na segunda metade de 1989, organizamos (através do nosso C.E.B.) dois grandes eventos geminados, sob o título Ciclo de Estudos sobre o Pensamento Budista. Um teve a duração de dois meses e meio e tratou da exposição do Dharma por muitas e diferentes pessoas, entre elas Ryotan Tokuda, Alexander Berzin, Lia Diskin, Lincoln Berkely, Celso Marques, Gehrard Kahner, Alfredo Aveline, Alberto Brum de Souza, Ricardo Lindemann, Jorge Preiss, Gustavo Correia Pinto e Antonio Renato Henriques. Outro evento geminado a este teve a duração de duas semanas e contou com a participação de vários professores da UFRGS, do Departamento de Filosofia, debatendo a relação do Dharma com o pensamento ocidental. Nesses debates participaram Tokuda San, Berzin e Aveline. Foram eventos memoráveis, extraordinários. Tivemos uma média de 80 pessoas nesses dias todos. Em alguns dias, bem mais ainda. Como resultado, estamos publicando as palestas do monge Tokuda na Revista Bodisatva e publicamos o livro do professor Berzin. O C.E.B. estava paulatinamente tomando corpo. Já tinha uma função, estava operando, cumpria uma necessidade, ia ao encontro do interesse das pessoas, uma porta de contato com as pessoas estava se abrindo. 

Nesta mesma época, em outubro de 1989, estávamos completando a obra da sala de zazen da Rua Barão do Cerro Largo. Ainda não havíamos praticado nenhuma vez lá. Eis que chega Tokuda San. Tudo novo. O tangka do Buda Shakyamuni, tudo arrumado e chega o monge Tokuda. Entra pela porta principal e faz três prostrações. Foi muito emocionante vê-lo reconhecer o lugar. Levanta-se e diz: “Este local já tem vibração”. Nunca havíamos praticado ali mas já tinha vibração. Logo ele consagrou o local e deu-lhe o nome de “Sanguen Dojô”, que significa “Local Para a Prática da Verdade Mais Profunda e Sutil”. Isso foi um estímulo extraordinário para nós e passamos a praticar todas as madrugadas, em grupo, no local, o que se prolongou até a minha nova mudança para o Rodeio Bonito onde estou residindo agora, a partir de março de 1990.

Exatamente um ano depois, no exato dia do primeiro aniversário do Sanguen Dojô, em outubro de 1990, estavam em Porto Alegre e presentes no Dojô Soto Zen o secretário de S.S. o Dalai Lama em Nova York, Rinchen Dharlo, o secretário de S.S. o Dalai Lama em Dharamsala e ex-presidente do Parlamento Tibetano No Exílio, Lodi Gyari, além de Lia Diskin e Odete Lara. Foi uma casualidade e uma grande alegria para nós. Nesta oportunidade, colhemos as primeiras assinaturas para a fundação formal do C.E.B. Mais adiante tivemos que dar outra redação ao texto e esse texto e essas assinaturas ficaram apenas para nossos arquivos.

Em 1990, seguimos as práticas e foi fundada a Revista Bodisatva por iniciativa de José Fonseca e Ana Elisa Prates que a conceberam e pediram minha colaboração. O primeiro exemplar foi realizado por uma editora particular e publicado pela F.E.E.U., Fundação Educional e Editorial Universalista. Os três números seguintes já foram feitos no Rodeio Bonito, com os computadores da Editora Paramita e com parte da digitação tendo sido feita pelo José Fonseca em seu próprio computador.

A revista ajudou muito na aproximação de pessoas e no trabalho de divulgar os textos, palestras, etc e é a fonte econômica principal do C.E.B. Temos muitos trabalhos que podem ser publicados na revista e em livros através da F.E.E.U.

No momento, várias pessoas estão gerando textos através de traduções e estudos como a Tânia Lohmann com o trabalho nos textos do monge Zen Coreano Dai San Sanin, de Enio Burgos (professor, físico, estudante de Medicina) sobre medicina tibetana (que é de grande importância), de Maria Esther Scop, Ivone Agostini e Dulce Rücker em temas diversos, de José Fonseca no Shobo Guenzo, do mestre Doguen. Vemos que esse trabalho é enorme e é importante que os tradutores encontrem nos textos seu próprio interesse central de estudo e prática. 

Em julho de 1991, Cinthia e eu fundamos a Editora Paramita, que não tem nenhuma vinculação formal com o C.E.B., e publicamos o livro com as palestras do professor Berzin: Coração-e-Mente. Hoje nossa atividade econômica principal está se transformando inteiramente no trabalho da Editora, através da qual realizamos trabalhos de editoração eletrônica para a F.E.E.U. o que está possibilitando uma vida mais voltada ao estudo e à prática de meditação.

No final de 1991, elegemos a primeira diretoria efetivamente representativa do C.E.B. Temos todos os cargos preenchidos e um estatuto em vigor. Há entusiasmo, há recursos financeiros adequados. Estamos com vários planos. O número de dojôs Soto Zen em Porto Alegre se multiplicou, agora são quatro: O do Celso Marques, o da Barão do Cerro Largo, o do Petrúcio Chalegre e o do Urbano Rücker. Quase todos os dias da semana estão cobertos. Na Barão do Cerro Largo temos zazen nas quartas e sextas-feiras às 19h30 onde vêm aproximadamente de 12 a 16 pessoas, e no sábado pela manhã às 5h30 onde temos em torno de 8 a 10 pessoas. Durante o restante da manhã de sábado, estudamos a “Vacuidade” e os Sutras Surangama e Lankavatara. À tarde, na GFU (sede da Grande Fraternidade Universal) das 15 às 17h, zazen e estudos com umas 30 pessoas no primeiro encontro, sábado passado.

Uma vez por mês, uma palestra sobre o Budismo segundo a abordagem de S.S. o Dalai Lama, ocasião em que estou começando a apresentar as palestras introdutórias de S.S. no Kalachakra de 1989 nos Estados Unidos, tiradas das fitas que estou transcrevendo. Em outubro de 1991 estive em Nova York para participar da cerimônia e iniciação de Kalachakra e dos cursos preparatórios e iniciações oferecidos pelos líderes das várias linhagens tibetanas, inclusive o Bon. Foi um evento extraordinário, pela primeira vez na história do Dharma, uma reunião semelhante e numa cidade do Ocidente, em Nova York. Lá pude assistir às aulas de todos os grande mestres tibetanos que estavam representando as diferentes linhagens: Ven. Lati Rinpoche (Gelugpa), Ven. Trulshik Rinpoche (Nyingmapa), por quem senti imediata empatia e que concordou em receber-me em treinamento no Nepal, Ven. Tenga Rinpoche (Kagyupa), Ven. Kyabje Sakya Tenzin Rinpoche (Sakyapa), Ven. Lopon Tenzin Namdhak Rinpoche (Bon) e Sua Santidade, o Dalai Lama, reverenciado e assistido por todos os mestres presentes, inclusive monges Zen, que deu aulas admiráveis. Estava também presente e deu uma palestra admirável Sogyal Rinpoche (Nyingmapa). Anotei tudo que pude e espero publicar parte disso na Bodisatva.

Seria difícil expressar o universo que se descortinou lá. Havia muitos monges que vieram de todas as partes dos Estados Unidos e do Canadá, e vários de outras partes do mundo. Do Brasil, três pessoas. Não posso ainda avaliar as consequências futuras de tal evento pois sinto que seu desenrolar é acionado em níveis muito sutis onde a racionalidade não consegue penetrar sem graves distorções, mas sinto algo grandioso e transformador. O que foi gratificante foi a grande unidade do Dharma. Todos falam o mesmo Dharma ainda que haja diferenças nos métodos práticos. Talvez no Ocidente se dê a grande aproximação de todas as linhagens budistas tradicionais em uma prática sem fronteiras. Se o Budismo reconhece a unidade de todas as coisas por que não haveria de reconhecer também a unidade da prática do Dharma? Isso ficou para a nossa geração.

Estamos pensando em organizar uma fundação e coletar fundos que possibilitem mandar pessoas para o exterior e receber pessoas de fora em programas regulares. Queremos trabalhar de forma mais e mais séria, responsável e adequada. Sentimos a importância de auxiliar a passagem do Dharma do Oriente ao Ocidente e o grande benefício que isso pode representar para todas as pessoas. Entre os nossos sonhos está também a construção de um prédio novo em conjunto com outras entidades. 

Em junho de 1992, recebemos Sua Santidade o XIV Dalai Lama, Tenzin Gyatso em Porto Alegre. Foi extraordinário pelo grande estímulo que todos recebemos e também pelo fato de que Sua Santidade abriu as portas do mundo oficial e do público em geral ao Budismo, numa escala muito mais ampla.

Não somos mais estranhos. 

Wilson, recebe nosso abraço e nossas saudações especiais. No Dharma, com carinho,

Alfredo Aveline
Centro de Estudos Budistas (C.E.B.)

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