Por Tenzin Wangyal Rinpoche
Com tradução de Jeanne Pilli
O mestre da linhagem Bön, Tenzin Wangyal Rinpoche, chega ao Brasil pela décima vez para lançamento do livro Criatividade Espontânea e o oferecimento de dois workshops, de 29 a 1 de dezembro, em São Paulo. Para celebrar a chegada deste grande mestre, a editora Lúcida Letra nos cedeu gentilmente trecho do capítulo do livro sobre como podemos despertar os poderes criativos essenciais de abertura, da consciência e a acessar o nosso espaço sagrado, fonte de todas as nossas qualidades positivas. O livro já está à venda, o lançamento oficial será nesta sexta-feira (29) com a presença do Rinpoche. Para saber mais sobre os ensinamentos que serão oferecidos, acesse o site do Ligmincha Brasil.
Criatividade é o que nutre a alegria. Quando somos criativos, expressamos a alegria de estarmos vivos. Em nossa essência, somos todos criativos.
Mas o que é criatividade, exatamente? É um artista trabalhando em seu estúdio, um compositor debruçado sobre seu piano, sua avó fazendo um bolo, seu vizinho cuidando do jardim? Sem dúvida, todos esses são esforços criativos. Mas, na tradição budista Bön, a criatividade é muito mais do que uma demonstração de habilidades ou de talentos específicos. É uma expressão da nossa natureza essencial – de quem verdadeiramente somos.
A criatividade é frequentemente associada à experiência de flow – foco energizado, expressão sem esforço, total imersão no que estamos fazendo. Tanto a criatividade quanto o flow surgem da mesma fonte – do espaço fundamental do ser. A essência da criatividade é o transbordamento espontâneo de qualidades positivas daquela fonte aberta.
A tradição dzogchen, praticada por mim, refere-se ao espaço do ser como a mãe (ma); à consciência que reconhece esse espaço como o filho (bu); e à união do espaço e da consciência, mãe e filho, como energia dinâmica (tsal). Não precisamos entender essa relação conceitualmente, mas vivenciá-la pessoalmente. Cada momento pode ser livre de esforço, bonito, útil e capaz de transformar nossas vidas se estivermos totalmente conectados ao espaço do ser. Quando vivemos a partir dessa conexão com a fonte, as qualidades que associamos à atividade criativa – alegria, ludicidade, bom humor, amor, generosidade – surgem naturalmente.
Ser criativo é intrinsecamente humano. Quer se trate de uma obra de arte que você cria, de um jantar que você prepara, ou da maneira hábil com que você conversa com sua filha quando ela faz algo arriscado, tudo isso pode ser permeado pela criatividade. Quando você está ciente e conectado ao espaço do ser, que é sua verdadeira natureza, suas ações e sua expressão têm o potencial de trazer o bem para o mundo. A expressão artística – na verdade, qualquer atividade humana – que surge da fonte é considerada sagrada. Na minha tradição, isso é chamado de trinlé, ou ação iluminada. Quando o que você expressa é uma ação iluminada, ela tem significado e propósito e beneficiará a você mesmo e aos outros.
Tradicionalmente, a fonte fundamental do ser é descrita como uma fonte inesgotável de água pura para quem tem sede; as chaves do tesouro do reino para os empobrecidos; um remédio para aqueles que estão doentes; um lar para aqueles que vagueiam; um melhor amigo para o solitário; um refúgio interno para aqueles que estão aprisionados no samsara, a roda da existência cíclica que nos ata ao sofrimento. Essa fonte é um potencial criativo que está à nossa espera para que encontremos uma maneira de expressá-la.
Na visão do Budismo Bön, nossa natureza é primordialmente pura. Assim, dentro de cada ser vivo está essa fonte pura de criatividade que dá origem às qualidades positivas e a infinitas possibilidades que são as causas da criatividade. Qualidades como amor, compaixão, alegria e equanimidade são a expressão espontânea dessa fonte e a essência do flow criativo.
A criatividade é nosso direito inato e nossa natureza é expressiva. Mas de que maneira nos conectamos com essa energia criativa para que possamos entregar os presentes que cada um de nós tem a oferecer ao mundo? Um dos métodos mais eficazes que encontrei para descobrir a criatividade é ativar o potencial criativo de cinco centros de energia no corpo que são conhecidos como chacras. Existem muitos chacras por todo o corpo; pode ser que você esteja familiarizado com as tradições que se concentram em sete. Aqui, vamos trabalhar com cinco chacras. Resumidamente, os chacras são portais para um caminho que começa com o espaço sagrado ilimitado e continua a se desdobrar do potencial criativo à manifestação criativa.
A libertação da energia criativa começa pelo chacra da coroa, no topo da cabeça. Aqui removemos o que impede a abertura e nos conectamos com a confiança para descobrirmos nosso potencial criativo. Se não experienciarmos essas qualidades diretamente, podemos acessá-las através do que chamamos de três portas: a quietude do corpo, o silêncio da fala interna e o espaço da mente. Encorajados por essa experiência de abertura e autoconfiança, nos conectamos com o segundo potencial criativo, a consciência, através da energia do chacra da garganta. Aqui descobrimos nosso valor inato, que vem da conexão com o nosso verdadeiro eu, e nos sentimos completos exatamente como somos. Os medos como eu não consigo ou eu não mereço, que bloqueiam a expressão criativa, dissolvem-se no calor da nossa atenção.
O terceiro potencial criativo que descobrimos é a inspiração, a energia do chacra do coração. Aqui, descobrimos qualidades positivas como alegria e amor. A criatividade floresce em um ambiente positivo, nutrindo e sendo nutrida pela felicidade e pela alegria, que são parte integrante do processo criativo. O quarto potencial criativo, que descobrimos através da energia do chacra do umbigo, é a qualidade do amadurecimento. O foco aqui é sobre o que quer que esteja dentro de nós, ou em nossa vida, quase pronto para se expressar, que precise apenas de um empurrãozinho, de um pouquinho da nossa atenção. Esse é um ponto crítico no caminho criativo: quando um projeto ou uma ideia está nesse estado de prontidão, ele pode se desdobrar de duas maneiras. Se dermos a luz e o calor da nossa atenção, ele pode ser completado, realizado. Mas, se não dermos atenção, ele pode acabar na pilha de projetos incompletos e de sonhos abandonados. Se nada bloquear nossa energia nesse momento, não será preciso quase nenhum esforço para o projeto ser concluído. No quinto chacra, o chacra da manifestação, nós avançamos e levamos nossos projetos criativos à fruição. A criatividade não é mais um mero potencial, ela se torna fato, toma forma. Sua expressão pode encantar e servir aos outros.
Pode parecer um processo simples, não é? Se a expressão criativa fosse tão fácil assim… Não teríamos dificuldade nenhuma em oferecer nossas habilidades e talentos ao mundo. Mas parece que as pessoas encontram muitas maneiras de se desconectar de sua essência e da fonte de criatividade. Eu conheci um homem que era um músico muito talentoso. Tendo recebido reconhecimento local, ele quis ir mais longe e espalhar sua música por todo o mundo. Encontrou outras pessoas que poderiam ajudá-lo a concretizar sua visão. Mas, no momento em que sua carreira decolou, ele começou a estragar tudo. Ele simplesmente não conseguia lidar com o sucesso e acabava se recolhendo de volta ao ponto familiar de onde havia partido como intérprete. Cada vez que se expandia para além de um determinado limite, surgia um medo muito profundo que armava uma emboscada. Ele se sentia preso e deprimido.
Então, como podemos acessar nossa energia criativa quando nos sentimos presos? Como podemos reacender a chama da inspiração? Mesmo sendo inerentemente ricos de qualidades positivas em nossa essência, podemos falhar em reconhecer nossos recursos internos. Como podemos nos reconectar à fonte? A chave é a consciência. Isso significa nos conhecermos intimamente. O conhecimento de nossa essência interna não pode ser adquirido através da aprendizagem formal. Não se trata de acumular habilidade ou dados. Consiste em reconhecermos a abertura e de estarmos conscientes dela em todos os momentos. A fonte aberta do ser torna-se nosso refúgio – apoio que está sempre disponível para nós.
Muitas vezes, porém, quando buscamos soluções para nossos problemas, estamos ocupados ou distraídos demais para nos voltarmos à abertura. Ficamos presos no cumprimento de prazos, trabalhando em nossas listas de tarefas e pensando no que faremos para relaxar quando o fim de semana chegar. Estamos tão acostumados ao sentimento de desconexão de nós mesmos e dos outros que podemos até pensar que as palavras sofrimento e dor não se aplicam a nós. Mas, para nos reconectarmos à nossa verdadeira natureza, é essencial que enfrentemos nossa insatisfação cara a cara e a vejamos como o sofrimento que é. O problema é que ninguém quer se sentir desconfortável; por isso evitamos olhar para nosso desconforto de várias formas. Afastamos experiências negativas e confundimos isso com o poder de dizer não. Apegamo-nos às coisas das quais gostamos e confundimos isso com conexão. Distraímo-nos de infinitas formas muito espertas e chamamos de entretenimento. Somos muito bons em evitar.
Mas o caminho para acessarmos a criatividade e manifestarmos nossas qualidades positivas sempre volta à abertura. É a base, o começo – não é uma etapa que podemos evitar. Uma vez que a abertura natural do ser é a fonte da criatividade, o que quer que nos impeça de sentir essa abertura bloqueia nossa criatividade e também nossa alegria. De fato, impede o surgimento de todas as nossas qualidades positivas. Se você refletir sobre o que está bloqueando sua criatividade a cada momento, é provável que encontre uma longa lista de obstáculos: não tenho tempo suficiente para fazer tudo o que preciso, imagine se daria para realizar algo criativo. Sou muito dispersa. Não tenho privacidade. Tenho contas para pagar. Depois que saio do trabalho, não tenho mais energia para nada. Conheço pessoas que repetem como um mantra, não consigo fazer isso, não consigo fazer isso, não consigo fazer isso. Envie a si mesmo uma mensagem assim, com bastante frequência, e veja se a criatividade terá alguma chance!
Há muitos bloqueios possíveis para viver criativamente, muitas desculpas para não agir. Quando resolvemos um bloqueio e o removemos da nossa lista, é provável que encontremos outro para substituí-lo. Dessa maneira, nossas listas nunca terão fim. Mas os itens nas nossas listas não são o problema. A pergunta a fazer não é o que está bloqueando você, mas quem. Quem é aquele que está sofrendo? Como você experiencia a si mesmo, a identidade que você cria, é o bloqueio número um do acesso à fonte interna de criatividade.
Sustentar a noção de um eu que é fixo e sólido – e que estará sempre com você – é um dos erros fundamentais identificados na tradição Bön e nas tradições budistas. Sofremos não em razão do que está acontecendo conosco, mas por causa desse eu com que nos identificamos e ao qual nos apegamos com tanta tenacidade. Essa é a causa do nosso sofrimento. Esse eu está sempre ocupado inventando uma história sobre como a vida é, e como os seres humanos tendem a ter um viés negativo, nossas histórias raramente têm um final feliz. No entanto, existe uma saída.
Através da prática da meditação, podemos olhar para dentro e investigar esse eu fixo que sofre. Quando fazemos isso, acabamos vendo que essa noção de eu só continua existindo porque nós a sustentamos com pensamentos e imaginação. Quando paramos de construir o eu dessa maneira, suas garras se afrouxam. Começamos a sentir uma abertura. Esse eu com foco estreito não controla mais nossos pensamentos, não bloqueia mais o acesso ao espaço interno, à fonte criativa.
A dificuldade é que esse falso eu, muitas vezes, fica escondido, direcionando nossa reatividade abaixo do nível de nossa consciência. Estamos tão acostumados a nos identificar com isso que agimos como se fosse real. Quando expomos esse eu, podemos reagir com apego ou aversão, nos agarrando a ele, incapaz de imaginar a vida sem ele, ou procurando maneiras de nos livrarmos dele. O mundo está cheio de conselhos bem-intencionados sobre o autoaperfeiçoamento, e muitas pessoas meditam na tentativa de substituir um eu indesejável por um outro eu mais positivo. Mas esses esforços são infrutíferos e equivocados. A questão fundamental que não está sendo tratada é sustentarmos a insistência de que temos uma identidade sólida e imutável. Descobrir a verdade da ausência do ego ou ausência do eu é um ensinamento fundamental na minha tradição e um passo essencial no caminho para manifestarmos nossas qualidades positivas.
Em vez de tentarmos contornar ou evitar a dor ou de tentarmos nos livrar dela, precisamos nos abrir completamente para a dor e para o desconforto. Qual- quer que seja a forma que o eu assuma – e pode ser tão mutável quanto o seu humor – é, sem dúvida, uma espécie de dor. Eu chamo isso de identidade de dor. Talvez você encontre um eu que é inseguro, hesitante ou que tem medo de ser notado. Talvez você esteja carregando um eu por aí que não está recebendo o reconhecimento que merece. Se o medo ou a insegurança surgirem como uma voz crítica ou um sentimento generalizado de infelicidade, eles provavelmente já vivem com você há bastante tempo. Mas, se você reconhecer a dor – mesmo a dor entrincheirada – diretamente, sua atenção terá a força de uma agulha de acupuntura atingindo precisamente o ponto certo para liberar a energia bloqueada. Um momento de medo ou insegurança, adequadamente enfrentado, pode conduzi-lo à descoberta de sua verdadeira natureza.
Para trazer sua consciência a uma experiência dolorosa, preste atenção às sensações no corpo, às emoções que estão surgindo, aos pensamentos que vêm à mente. Ao abrir-se à experiência, toque-a diretamente, tomando consciência de uma maneira imparcial. Não se afaste de nenhuma parte da sua experiência. Apareça. Esteja presente. Não se abandone e nem abandone seu desconforto.
Costumo sugerir que você trate a dor ou o medo como trataria um amigo querido que veio até você tremendo de medo. O que você faria? Estaria totalmente aberto a essa pessoa, certo? Nesse momento, não dividiria sua atenção com o celular na mão, dizendo: “Ah, só um minuto, estou recebendo uma mensagem. Mas… vá em frente. Estou ouvindo você.” Não. Focaria toda a atenção em seu amigo. Estaria presente. Quando você está totalmente presente à dor de alguém, surge naturalmente o calor e um profundo carinho. Pode acontecer o mesmo com relação ao seu próprio desconforto. Se estiver totalmente presente, começará a mudar. Quando a dor é liberada, o calor surge espontaneamente a partir do espaço do ser.
Agradecimento especial: Editora Lúcida Letra
O livro conta com meditações guiadas gravadas em áudio por Jeanne Pilli.
FONTE: BODISATVA