Angústia existencial, instabilidade emocional e descontentamento com a vida já estão no mundo há alguns milênios. Mas existe uma percepção coletiva de que estamos chegando ao fim desta década especialmente esgotados, raivosos, deprimidos e desorientados – uma sensação lá no fundo de que as peças não se encaixam direito como antes. Os preocupantes números sobre transtornos mentais em países como Estados Unidos e Brasil deixam visível um problema que até há pouco tempo era mais tratado como “questão da alma” do que de saúde pública.
O canadense John Vervaeke, professor da Universidade de Toronto nas áreas de ciência cognitiva, psicologia e psicologia budista, afirma que o sistema onde encontrávamos sentido no mundo começou a falhar de tempos para cá. Vervaeke é autor de uma série de vídeos no YouTube chamada “Despertando da Crise do Significado”, que já tem 44 episódios, cada um com 55 minutos em média.
“Quando falamos sobre significado, sobre sentido da vida, nós estamos falando sobre como as pessoas entendem o seu lugar no mundo, entendem o lugar de outras pessoas e como funciona o próprio mundo. E, dentro isso, as pessoas tentam resolver suas vidas e alcançar seus objetivos na vida”
-John Vervaeke
As religiões e seus rituais definiram por muito tempo como as coisas funcionavam, quais eram os passos a serem seguidos e também deram coesão a comunidades. Filósofos na Antiguidade produziram antídotos para conflitos internos, comportamentos autodestrutivos e ilusões que criamos e nos enganam.
“Religião e filosofia antiga forneceram por muito tempo uma imagem de mundo que explicava por que certas ações deveriam ser adotadas e como as pessoas se encaixavam na estrutura da realidade”, disse. “Em todas as culturas foram inventadas práticas que transformaram a cognição, a consciência, o caráter e a comunidade para enfrentar problemas perenes. Elas tratam de cultivo da sabedoria e de melhoria das habilidades para alguém se conectar consigo mesmo e com o mundo de forma profunda”, disse ele em entrevista ao G1.
MUDANÇAS HISTÓRICAS
Vervaeke afirma que grandes eventos históricos ao longo dos últimos séculos como a reforma protestante, a revolução científica, a revolução industrial e a revolução computacional fizeram com que essas práticas se perdessem ou se fragmentassem, e o cultivo do significado fosse deixado de lado.
O professor da Universidade de Toronto diz que não está advogando um retorno a esse mundo antigo mais simples de compreensão e nem é nostálgico desse período. Seu ponto é estudar a estrutura anterior para restabelecermos uma funcionalidade que está faltando nos dias atuais. E aí que entra a ciência.
“Ela complementa a análise histórica. Entender o funcionamento do cérebro e da mente nos ajuda a perceber os processos que dão sentido à nossa existência e o que acontece quando há um desarranjo neles. Assim, podemos entender como as práticas das velhas instituições funcionavam e assim criar e legitimar novas, e talvez melhores, versões dessas antigas práticas.”
Vervaeke conta que cresceu em uma família cristã fundamentalista no Canadá. “Um jeito bem traumático de ser criado”, diz. No ensino médio, entrou em contato com filosofia e religião oriental: “Teve um efeito libertador muito forte em mim”.
Quando descobriu Carl Jung (suíço que fundou a psicologia analítica), “isso me colocou no caminho da exploração das profundezas da minha psique para entender a minha complicada e conflituosa relação com religião e espiritualidade. Durante este tempo eu entrei em uma profunda crise pessoal, de sentido da vida, em um espaço de incerteza. Quando cheguei a faculdade e descobri Sócrates dentro da obra de Platão eu continuei, e continuo a encontrar, um caminho para obter transformação e significado no cultivo da sabedoria”.
A jornada teve novo impulso quando Vervaeke começou a praticar tai chi chuan, meditação e contemplação – algo que mais tarde se mostraria valioso quando a comunidade universitária e científica começaram a expressar um interesse mais sério sobre essas técnicas.
Por outro lado, ele vê com reservas a onda do mindfulness, que vem sendo explorada em apps e cursos de meditação “deluxe”. “[O mercado] torna mais fácil vender coisas que prometem que vamos nos tornar a pessoa que queremos ser. Também desejamos ter cada vez mais objetos, mas a frustração e a confusão persistem sob um desespero crescente. Não há nada de errado em possuir coisas. Nós precisamos de objetos para sobreviver”.
“O perigo é quando nós confundimos transcendência pessoal e possuir coisas.”
-John Vervaeke
TRANSCENDÊNCIA SEM $
Aliás, “transcendência pessoal” é possível para o trabalhador de poucos recursos e longas jornadas diárias, em que nas poucas horas de folga precisa cuidar da família ou resolver outras incômodas pendências?
Vervaeke não nega essas limitações: “As pessoas precisam de tempo e de moradia, precisam assegurar comida e recursos antes de buscar significado em profundidade. Não fale para alguém cultivar sabedoria se ela está primeiro precisando de roupa. A crescente disparidade socioeconômica e a ameaça de problemas ambientais não vão ser resolvidas se as pessoas não acordarem justamente para a questão de que alguém não se torna o que deseja apenas adquirindo coisas, ou seja, tenta acumular muito ao mesmo tempo em que se ‘torna’ tão pouco”, afirma.
Independente de privilégios ou dificuldades, o professor da Universidade de Toronto aponta uma dificuldade que sociedade ocidentais têm de forma geral: aceitar que não há uma “resposta final”, uma “solução final” para as nossas batalhas internas.
“Eu uso de propósito a expressão ‘solução final’ [termo se refere ao plano de genocídio da população judia] para fazer alusão aos nazistas e ao Holocausto porque eu quero destacar o lado sombrio de visões utópicas. A ideia de que não há um propósito final é contra-intuitivo para os ocidentais porque fomos moldados pelo conceito judaico-cristão de progresso cosmológico. A ideia de progresso até uma terra prometida foi um mito poderoso para organizar nações e inspirar indivíduos em busca de transcendência moral. Mas esse conceito tem sido largamente invalidado. Nós precisamos de representações de transcendência pessoal que não estejam ligadas a uma narrativa cosmo-política”, afirma.
Vervaeke compara esse processo a paixão. “Não há estado ou objetivo final quando você está apaixonado por alguém. Em inglês, dizemos ‘falling in love’ [literalmente ‘caindo no amor’]. Essa queda pode nos levar ao que está profundamente dentro de nós mesmos e de quem amamos. Nós podemos nos tornar mais e mais conectados. Eu estou propondo que alcancemos isso quando temos um cultivo apaixonado da sabedoria. “
SUGESTÕES DE JOHN VERVAEKE PARA ENCARAR A CRISE DE SIGNIFICADO NO DIA A DIA
- incluir o cultivo de uma mente aberta, em que se tenta identificar vieses cognitivos (as nossas visões pessoais que às vezes não se apoiam em fatos e podem levar a decisões irracionais)
- práticas meditativas e contemplativas
- práticas com movimento, com exercício físico, como tai chi chuan, artes marciais ou ioga
- leituras de filosofia clássica (ele recomenda “O que é filosofia antiga”, de Pierre Hadot)
- envolvimento com a sua comunidade
- práticas de discussões como os “círculos de diálogo”
- procurar comunidades on-line que analisem obras relacionadas à crise do significado