Estas mulheres trans abriram uma cooperativa segura para imigrantes LGBTs nos Estados Unidos

Hoje é noite de karaokê no Q-Center, espaço de reuniões da LGBT Network no bairro de Long Island City, no Queens, em Nova York, nos Estados Unidos. Mas nem a clássica Dreams, do Fleetwood Mac, é capaz de distrair as mulheres da Mirror Beauty Cooperative, que estão fazendo uma reunião de planejamento.

Estou à mesa com Lesly Herrera Castillo e Joselyn Mendoza, além da recém-chegada Johani Rosa (e do sócio Daniel Puerto, que traduziu a conversa do espanhol para o inglês).

Apesar de ter sido criada conceitualmente em 2015, a Mirror Beauty ainda não tem um espaço físico. Cada uma das integrantes trabalha em outros salões de beleza, e semanalmente se reúnem para levar adiante um sonho: ter um salão de beleza próprio para atender à população trans e latina do bairro Jackson Heights, também no Queens.

No fim do túnel, segundo as fundadoras, está não só a independência econômica, mas também a liberação da discriminação de raça e gênero que elas sofreram a vida toda.

Cooperativas são empresas em que os donos e os gerentes são os próprios funcionários. Há mais de cem anos esse modelo serve de caminho para a liberdade econômica e a justiça dos não-brancos norte-americanos.

Organizações como a Young Negroes Co-operative League, fundada nos anos 1930, foi decisiva para a criação da Federation of Southern Cooperatives, em 1967, que desde então cresceu e tornou-se uma rede que conta com dezenas de milhares de negros que trabalham no campo.

O número de cooperativas nos quase dobrou nos Estados Unidos nos últimos dez anos, e boa parte desse crescimento vem de comunidades não-brancas. 

A maioria das novas cooperativas assume o controle de negócios que já existem, mas Rosa, Herrera e Mendoza estão tentando começar a Mirror do zero. E a tarefa é ainda mais complicada porque elas enfrentam dois estigmas: o de imigrantes e o de transgêneros.

“A importância da cooperativa para mim é a oportunidade de criar mais empregos e um espaço livre de discriminação”, explica Mendoza, imigrante mexicana que começou a estudar cosmetologia há quatro anos. “As mulheres trans muitas vezes não têm acesso a uma economia saudável, e queremos mudar isso, dar acesso a outros serviços, como planos de saúde.”

“As mulheres trans muitas vezes não têm acesso a uma economia saudável, e queremos mudar isso.”

Joselyn Mendoza, co-fundadora da Mirror Beauty Cooperative.

“As oportunidades são limitadas para nossa comunidade”, concorda Herrera. Veterana com 26 anos de experiência (15 deles nos Estados Unidos, depois de imigrar do México), Herrera diz que a parte mais difícil da vida profissional das trans latinx não é arrumar um emprego – é mantê-lo. “Muitos dos problemas com discriminação vêm, se não dos chefes, então dos colegas [cisgênero]”, que muitas vezes são abertamente hostis.

Em um levantamento realizado em 2015 com mais de 27 000 trans, queers de gênero e não-binários indicou que 16% dos entrevistados disseram ter sido demitidos por causa da identidade de gênero ou da expressão dela. Mulheres trans e trans não-brancos tinham maior probabilidade de ter passado pela experiência.

Herrera, Mendoza e Rosa todas têm histórias de discriminação para contar. Quando elas conheceram a argentina Nadia Echazú, uma cooperativa têxtil argentina batizada em homenagem a uma ativista morta aos 33 anos, Mendoza viu ali uma possibilidade de escapar do ciclo de opressão.

“Adoro a ideia de uma cooperativa de trabalhadores e fiquei contente quando Joselyn me convidou para o projeto”, lembra Herrera. Para ela, um salão cujos donos são trans é uma chance de “trabalhar livremente” e expressar sua criatividade sem medo de discriminação ou maus tratos por parte de chefes ou colegas.

Herrera afirma que o foco da Mirror é “dar trabalho para a comunidade trans”, mas essa não é o único tipo de ajuda que o coletivo quer dar à população marginalizada. Mendoza afirma que, na sua opinião, “o maior benefício disso é criar empregos para pessoas sem documentos”.

É por isso que a Mirror Beauty Cooperative foi registrada como uma empresa, não como uma cooperativa. Cada um dos membros será co-proprietário, não funcionário – na prática, isso significa a remoção de um obstáculo burocrático importante para imigrantes que não têm autorização para trabalhar nos Estados Unidos.

Como o Internal Revenue Service (a Receita Federal americana) não envia informações para os órgãos responsáveis pela imigração, quem não tem papeis pode usar esse tipo de registro para abrir contas bancárias, pedir empréstimos e criar históricos de crédito e de pagamento de impostos.

Segundo o National Immigrant Law Center, esse tipo de estratégia também pode ser usado como comprovante de residência e no pedido de apoio econômico como abatimentos de impostos para famílias com filhos.

Em 2014, esse tipo de empresa recolheu estimados 9 bilhões de dólares em impostos sobre folha de pagamento.

Lesly Herrera Castillo, Jonahi Rosa e Joselyn Mendoza na sede da LGBT Network, em Nova York. [Foto: Demetrius Freeman for HuffPost]

Herrera e Mendoza começaram a organizar a Mirror há três anos, mas ainda não arrecadaram dinheiro suficiente para abrir um salão próprio. Elas dizem ter enfrentado obstáculos por não terem educação tradicional e porque imigrantes não têm tantas oportunidades econômicas. A campanha de crowdfunding da Mirror no GoFundMe, principal componente da estratégia para levantar recursos, obteve apenas 1 340 dólares desde maio – a meta é de 150 000 dólares. 

Pergunto se elas estão frustradas porque a visibilidade recente dos transgêneros tem trazido benefícios econômicos mais para as trans brancas, deixando as outras para trás. Mendoza concorda. “As trans brancas sempre tiveram mais privilégio no que diz respeito ao trabalho”, afirma ela. “Mulheres trans latinas têm de superar vários obstáculos. Acredito que, se mulheres trans brancas começassem um projeto parecido, a incubação seria mais rápida.”

Ainda assim, Herrera diz acreditar que “sempre podemos contar com a comunidade trans branca” para apoio material, “porque elas sabem que têm um nível [econômico] melhor.”

Herrera diz que, se a campanha de crowdfunding não atingir o objetivo, o grupo tem um “plano B” confidencial. A ideia é estar operando num espaço próprio daqui um ano. Mas Herrera não perdeu as esperanças: “Acho que a campanha do GoFundMe vai mostrar organicamente que as pessoas nos adoram e nos apoiam”.

Mesmo sem o salão, a cooperativa está marcando presença no bairro fazendo trabalho voluntário. Logo depois do lançamento da campanha de crowdfunding, o trio participou da Parada do Orgulho no Queens – e Rosa carregou um cartaz que dizia: “Invista em trans latinas”. Em um evento recente patrocinado pelo SAGE, uma organização que defende os direitos da população LGBT de idade avançada, a Mirror ofereceu serviços de cabeleireiro. Herrera diz que, quando tiver um salão próprio, o coletivo vai realizar eventos mensais para ajudar abrigos de sem-teto da região. A ideia é abrir um negócio que também funcione como um ponto central na organização das demandas da comunidade. “É a oportunidade perfeita para a comunidade se unir e fazer algo por seu futuro.”

Ouvir as mulheres falando de sua visão é empolgante, mas, sendo mulher trans, me pergunto como elas estão lidando com as dificuldades. Trans não-brancos nos Estados Unidos de Donald Trump vivem com vários traumas e ansiedades. E o bairro de Jackson Heights também não ajuda muito. Apesar de ser etnicamente diverso e abrigar uma intersecção vibrante de comunidades latinx e LGBT, a região também vem registrando diversos crimes de ódio contra trans nos últimos anos – muitas vezes, as vítimas são profissionais do sexo. 

Conversando no Q-Center, que fica perto de Jackson Heights, o nome de Kathy Sal está na minha memória. Não consigo imaginar a coragem necessária para trans abrirem um negócio próximo do quarteirão onde ela seguida até em casa e espancada, em 2015.

Mas, para Rosa e suas parceiras, abandonar o bairro – e a comunidade de imigrantes que elas encontraram – nunca foi uma opção. “Já andei sozinha pelos bairros mais perigosos de Porto Rico”, diz Rosa, que se mudou para Nova York há três anos. “Sempre estive na rua, exposta. Essa violência é justamente no que não preciso pensar.” E Herrera me lembra: “Os ataques não acontecem só em Jackson Heights. Eles podem ocorrer em qualquer lugar. Acho que, com o nosso trabalho e dos nossos aliados, conseguiremos continuar construindo um futuro melhor.”

*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.

Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/entry/cooperativa-trabalho-trans_br_5d812597e4b077dcbd657a6c

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