Por Paula Adamo Idoeta – @paulaidoeta – Da BBC News Brasil em São Paulo

 
 
 
 

O linguista e acadêmico americano Daniel Everett teve sua vida completamente transformada por conviver, ainda nos anos 1970, com os índios brasileiros da tribo pirahã, na Amazônia.

Everett, na época missionário cristão, uniu-se à tribo com a missão de traduzir a Bíblia ao idioma pirahã. Não saiu conforme o planejado: o americano não só ficou surpreso com a estrutura inusual do idioma dos pirahã, como pela vida cotidiana da tribo. O então missionário acabou se tornando ateu.

Daniel Everett na Amazônia; ao conviver com índios pirahã, o então missionário se tornou ateu e criou teoria linguística que desafia a tese predominante (Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil)

“A língua deles não tem passado nem presente — ‘eu vou’ pode ser ‘eu fui’ ou ‘eu irei’. Você precisa entender o contexto”, explica Everett em entrevista por telefone à BBC News Brasil, em português fluente pelas três décadas passadas estudando as línguas do Brasil.

“Aprendi sobre uma autoconfiança que eles têm de poder lidar com seu meio ambiente, e a felicidade que essa confiança traz para eles. Eles sabem que existe um passado, mas não falam sobre ele porque o passado já era, ‘o importante é cuidar dos nossos filhos, cuidar do meu ambiente agora e não se preocupar com o futuro’. (…) Eles não têm culto ou religião, não têm crença em um Deus superpoderoso que criou o mundo. Simplesmente são, na realidade, cientistas, empíricos — têm conhecimento pelas experiências na mata, e não especulações sobre o que não dá para ver”, afirma.

“É a vida sem crenças religiosas e a satisfação que isso traz para seres humanos. Por causa deles hoje sou ateu. Não estou defendendo o ateísmo, estou simplesmente dizendo que isso representa uma alternativa de vida.”

O estudo dessa estrutura linguística curiosa dos pirahã evoluiu para uma proposição que hoje desafia a mais estabelecida teoria da Linguística e que Everett volta a detalhar em um livro recém-lançado em português, Linguagem: A História da Maior Invenção da Humanidade (editora Contexto).

“Sem essa invenção não haveria nenhuma outra”, argumenta. “A linguagem foi essencial para todas as civilizações, para todas as outras tecnologias, para tudo o que temos.”

Daniel Everett com índios pirahã; “Aprendi sobre uma autoconfiança que eles têm de poder lidar com seu meio ambiente, e a felicidade que essa confiança traz para eles” (Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil)

Choque de teorias

Everett defende em seu livro que línguas como a pirahã “não parecem possuir qualquer gramática hierárquica” ou estruturada como os demais idiomas, nem parecem ter a chamada recursão, processo linguístico que consiste em inserir uma frase dentro da outra (o recurso de unir, por exemplo, as frases “homem caminha pela rua” e “homem veste chapéu” em “o homem que veste chapéu está caminhando pela rua”).

Essa proposição, porém, desafia a teoria predominante da linguística, encampada pelo influente intelectual Noam Chomsky, que defende a ideia de uma “gramática universal”: de que alguns aspectos estruturais, como a recursão, são comuns a todos os idiomas e de que humanos possuem uma capacidade inata e genética relacionada à aquisição da linguagem. Nesse caso, a linguagem não seria, portanto, uma invenção humana, mas inata aos humanos.

Em resposta à teoria de Everett, Chomsky já chegou a chamá-lo de “charlatão” e argumentou que as peculiaridades do idioma pirahã não colocariam em xeque a “gramática universal”, uma vez que os falantes da língua teriam, segundo ele, os mesmos componentes genéticos que o restante da humanidade.

Everett diz não descartar o valor da genética na linguagem, mas defende que é preciso considerar o papel da cultura humana no desenvolvimento dos símbolos, que por sua vez levam às línguas.

“Nosso cérebro maior se deve à genética, então não estou dizendo que a genética seja irrelevante — mas não necessariamente uma linguagem especificamente designada à linguagem. A inteligência junto com a cultura, a meu ver, é capaz de explicar a origem da linguagem”, afirma à BBC News Brasil.

“Durante muitos anos achei (a teoria de Chomsky) não somente plausível como a aceitei, mas acho que (…) a explicação é mais simples. Sabemos que todos os seres humanos têm cultura, todo o mundo tem símbolos, e simplesmente não vejo necessidade de postular algo a mais (como a ‘gramática universal’). Acho que a diferença entre o ser humano e os outros animais não é tão grande quanto pensávamos.”

Simulação do Homo erectus, que, segundo Everett, foi o ‘inventor’ da linguagem
(Foto: BBC News Brasil)

Do Homo erectus ao emoji

Outra divergência é temporal. Chomsky e colegas escreveram em artigos que “a faculdade da linguagem provavelmente emergiu recentemente em termos evolucionários, cerca de 70 mil a 100 mil anos atrás”.

Everett, porém, defende que ela é muito mais antiga e remete ao extinto hominídeo Homo erectus, 2 milhões de anos atrás, também sob a influência da cultura e da ânsia exploratória dessa espécie.

Seu argumento é de que o Homo erectus vivenciou a “primeira e maior era da informação” e foi capaz de viajar por diversos continentes e mares, de Israel à China e à Indonésia, graças a sua capacidade de imaginar e de se comunicar pela linguagem, embora com sons provavelmente diferentes dos que somos capazes de fazer hoje.

“Sempre que você falar sobre algo de 2 milhões de anos atrás, haverá controvérsia”, diz. “(Mas) sabemos que o Homo erectus tinha inteligência, cultura e símbolos, que o mar não era barreira para ele. (…) Somos as primeiras criaturas com cultura, então a ideia de que (isso) tenha evoluído para um sistema de símbolos mais avançado, ou seja, para a linguagem, não é tão difícil de imaginar quanto tem sido por causa da influência de Chomsky sobre muitos arqueólogos.”

O pesquisador afirma que assistimos a uma espécie de repetição disso atualmente com a proliferação dos emojis — que, embora não tenham sido criados “do nada”, como Everett diz ter sido o caso com a linguagem, são uma forma nova de comunicação.

“Se você coloca três emojis, faz uma sentença. É, de certa forma, a recriação da história da invenção da linguagem, com o Homo erectus. Estamos criando novos símbolos e encaixando esses símbolos em sentenças”, diz.

Teoria de Everett difere da de Noam Chomsky
(Foto: AFP / BBC News Brasil)

Nessa mesma linha, ele opina que nossa fascinação com as redes sociais nada mais é do que a sucumbência “ao impulso das trocas linguísticas” que carregamos há milhões de anos.

Influência brasileira

Everett diz que, para construir suas teorias, foi “fundamental” a experiência de mais de 30 anos que teve estudando a “riqueza linguística” das culturas indígenas da Amazônia brasileira.

E ele acha que avanços do desmatamento e das queimadas nas florestas podem ameaçar essa riqueza.

“Temos tantas lições a aprender ainda sobre as culturas e línguas amazônicas que destruir os ambientes necessários para sustentá-las tira do mundo inteiro uma fonte de conhecimento que não teríamos em nenhum outro lugar do mundo”, diz à reportagem. “Sabemos mais sobre nós quanto sabemos mais sobre eles. Estudar essas línguas e esses povos foi o maior privilégio da minha vida, eles me ensinaram mais sobre a natureza do ser humano do que qualquer coisa que li em livros.”

Por fim, Everett diz que gostaria que as pessoas mantivessem a mente aberta para múltiplas possibilidades sobre as origens das línguas.

“As pessoas têm que ser abertas para várias hipóteses diferentes. A minha hipótese sobre a origem a linguagem tem muito apoio, mas não estou dizendo que não é preciso estudar outras. Temos que ler muito e pensar muito, porque (nós humanos) somos apenas gorilas falantes e precisamos de toda a ajuda possível”, afirma.

“A natureza do ser humano é de achar que é especial em relação aos outros animais, mas não somos. Fazemos coisas estúpidas e brilhantes, de muita beleza ou muito feias. Mas a linguagem é que nos permite fazer isso tudo.”

 

Fonte: Terra
 

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