Com o olhar do cientista, ecologista e espiritualista, Padma Samten lança luzes sobre o momento presente.

Alfredo Aveline é mestre em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde foi professor por 25 anos, período em que também se envolveu com as lutas ecológicas locais e mundiais.

Em seus estudos da Física Quântica, encontrou nesta ciência afinidades com o pensamento budista que ele aprofundou nos anos 80, sendo ordenado em 1996 como lama (professor) Padma Samten, pelo mestre tibetano Chagdud Tulku Rinpoche, o fundador do Chagdud Gonpa (Templo de Três Coroas)

Atualmente dirige o Instituto Caminho do Meio – Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), com sede em Viamão (RS), e coordena outros 50 Centros em diferentes estados do Brasil, três escolas infantis e oito aldeias (condomínios) com propostas cooperativas e sustentáveis. 

Como Lama, Padma Samten tem auxiliado inúmeras pessoas em suas vidas e relações cotidianas, com ensinamentos que dialogam com as mais diversas áreas do conhecimento a partir de uma interface com a espiritualidade. Orienta seus alunos em estudos, retiros e meditação através da compreensão da espiritualidade e da cultura de paz enquanto caminhos para desenvolver boas relações no ambiente onde vivem. Frequentemente é convidado como palestrante e/ou consultor por empresas, órgãos públicos, universidades e outros segmentos, traduzindo para as organizações a aplicação prática dos conhecimentos budistas de vinte e seis séculos frente às dificuldades atuais.

A abordagem do Lama Samten traz o precioso e profundo olhar sobre a realidade e a existência tão necessários nas circunstâncias desafiadoras do presente. O Nosso Bem Estar dedica este olhar aos seus leitores e parceiros nesta entrevista exclusiva.

Como entender este momento histórico sob a ótica da Ciência, da Ecologia e da Religiosidade?

Lama Samten – O Buda fala essencialmente nas Quatro Nobres Verdades e então nós entendemos a existência do sofrimento. Não temos controle sobre as coisas, pois elas se desenvolvem para além das nossas aspirações e das nossas vontades. A existência do sofrimento é o fato de que isto não acontece uma ou outra vez, mas este é o ambiente onde a vida surge e onde a vida se manifesta. Então não temos como controlar isto e todos os seres estão imersos neste tipo de situação. Por outro lado, o Buda mostra como esta situação é construída por visões que nós desenvolvemos e por bolhas de realidade que constroem estas visões. Dentro destas bolhas nós temos aspirações, referenciais e limites que nós mesmos estabelecemos e estas condições fazem surgir o que nós chamamos de sofrimento.  Mas o Buda explica também que nós não somos isto que surge. Nós somos aquilo que cria o que surge. Esta é uma postura muito profunda e nos ajuda a compreender que este aspecto que cria não cessa. Quando nós dormimos à noite, por exemplo, este aspecto que cria segue criando. Produz os nossos sonhos, produz a aparência dos sonhos. No budismo se diz que a própria vida é uma manifestação de sonho também. Então nós percebemos que aquilo que chamamos de vida, o nosso ambiente ao redor, nós criamos constantemente com os nossos olhares, produzimos aparências e damos significado a estas aparências. E estes significados mudam o tempo todo. O Buda diz que nós efetivamente estamos além do sofrimento. Temos a possibilidade de entender que a nossa vida se dá além das construções, antes das construções e independente das construções. Esta vida mais profunda está isenta do sofrimento.

Sob o ponto de vista da Ecologia entendemos que, de fato, há uma interdependência muito, muito próxima entre todos os seres. Estes outros seres – neste caso os vírus – terminam se manifestando e impactando a vida no planeta como um todo. Na medida em que impactou os humanos houve uma mudança muito grande: a atmosfera melhorou, os mares melhoraram… tudo foi melhorando e houve uma transformação incrível. O surgimento de um vírus que até recentemente não existia acabou produzindo esta enorme alteração. Isto nos ajuda a compreender como a vida toda é profundamente inter-relacionada. Não apenas os animais grandes, as plantas grandes, os ecossistemas complexos, mas também este aspecto de que temos mundos macroscópicos ou microscópicos inter-relacionados não apenas entre si. Ou seja, também seres microscópicos podem produzir grandes alterações no macro. Isto é muito notável. Muito extraordinário. Eu lembro do (ecologista) José Lutzemberger dizendo que nós podemos cortar uma teia de aranha em vários pontos, mas, de repente, quando nós cortarmos um determinado ponto a teia entra em colapso. É muito especial a gente entender que nós seres humanos estamos mais e mais frágeis, dependendo de algumas poucas ligações. Na medida em que estas ligações são afetadas, a sociedade como um todo pode repentinamente se tornar inviável.

Neste momento também nos tornamos mais conscientes da importância da Ciência. Há pouco tempo algumas pessoas estavam falando muito mal da Ciência, produzindo imagens retrógradas, e agora todos nós nos voltamos melhor para a Ciência para entender sobre o que está acontecendo. Eu vejo que a espiritualidade no budismo dialoga perfeitamente com a Ciência. O budismo tem uma abordagem investigativa prática de como a gente pode ver as realidades como elas são. 

O senhor acredita que estaremos dando algum tipo de salto de civilização ou tudo tenderá a se acomodar como era antes?

– O mundo nunca anda para trás. Na visão budista nós fazemos as construções a cada dia e estas construções acontecem a partir da experiência condicionada que tivemos um pouco antes. Então, com esta experiência condicionada da própria pandemia, é inevitável que a realidade adiante seja construída tendo por base também esta experiência. Entre os aspectos que me parecem mais notáveis está o fato de sentir que a gente consegue parar o mundo por um tempo. E percebe que, parando a atividade humana no nível que ela vinha acontecendo, a natureza toda agradece. O ar melhorou, a água melhorou, os animais melhoraram. Tudo melhorou na natureza na medida em que os seres humanos reduziram seus impactos simplesmente ficando mais em casa. É muito extraordinário reconhecer isto.  Esta experiência nos permite entender que o mundo pode ser parado e profundamente transformado. Uma experiência coletiva planetária de transformação nos nossos cotidianos, nas nossas vidas. É um experimento maravilhoso que nos impacta no sentido de pensarmos que hoje nós paramos pelo coronavírus, mas amanhã podemos fazer grandes movimentos coletivos, planetários cujo objetivo seja justamente reduzir nosso impacto, viver de outro modo. E nos permite ainda lidar com a crise que já estávamos vivendo: a crise ecológica. A crise de destruição do planeta.

Vejo que neste momento nos empoderamos para poder fazer estas transformações. Mas quando a gente pensa em construir outras realidades, imediatamente nos damos conta de que a estrutura econômica do mundo, da forma como hoje está estabelecida, não dá conta disto. Porque há um número muito grande de pessoas que estão alijadas do processo de receber as bênçãos naturais. Não têm acesso à riqueza natural que se espalha pelo sol, pela água, pela terra. Eles vivem dos fragmentos liberados pelas pessoas que já têm este acesso. Então não acho que seja possível continuarmos com esta limitação de um número restrito de pessoas e/ou grandes empresas acessarem todas as bênçãos que vêm da água, sol, calor, terras férteis, rios e dos mares, enquanto um número muito grande de pessoas não têm este acesso. Se pensarmos em uma sociedade mais ecológica e mais equilibrada, esta “Economia da Exclusão” – em que poucos têm acesso às riquezas e outros apenas um acesso marginal – não terá como dar conta dos seres humanos. Com certeza nós vamos ter transformações sociais super importantes. Então vamos aprender que a redução da atividade humana vai exigir uma reorganização política, social e econômica. Vai exigir uma nova estruturação da sociedade baseada na Ecologia e no benefício aos seres humanos e não no modelo desenfreado da Economia Financeira.

Quais as melhores lições que podemos e/ou devemos tirar deste momento?

– Parte desta questão está respondida nas perguntas anteriores, mas há alguns elementos que eu gostaria de somar aqui. Um dos fatos que me chama muito a atenção neste momento é como as pessoas pobres conseguem socorrer as pessoas pobres. A maior riqueza neste tempo de aflição é justamente a compaixão. Me chama muito a atenção que os atores econômicos que sempre foram constantemente protegidos pelo governo neste momento se retiram e não revelam força. Revelam fraqueza. Curiosamente aqueles que revelam força não revelam a força do universo econômico, mas a força compassiva.

Algumas grandes empresas disponibilizaram recurso e capacidade de organização. Isto é muito extraordinário. Mas também muito extraordinário é que em regiões muito pobres as pessoas pobres se ajudam, chegam a compartilhar garrafas de água para que outros possam beber ou se higienizar um pouco. No limite de sua própria carência, seguem se protegendo e se ajudando uns aos outros. Este potencial me ajuda a ver nisto o exemplo da fala do Dalai Lama quando diz que “o mundo não é sustentado pela Economia, mas sim pela Compaixão”. E a gente está podendo ver de forma clara este tipo de exemplo.

Em sua história, a humanidade já passou por grandes crises. Qual seria o olhar diferencial necessário para entendermos a pandemia como uma oportunidade de evolução para um estágio mais elevado?

– A evolução da humanidade sempre se dará através de uma mudança para referenciais mais elevados. Se neste momento pudermos entender que surgem referenciais mais elevados – como a compaixão – no meio de uma crise, isto seria maravilhoso. De uma forma mais elaborada, se nós fizermos surgir compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria (descrição das quatro qualidades incomensuráveis e das seis perfeições) nós vamos construir um mundo muito melhor. Se nós usarmos um software melhor, ou seja, se usarmos a nossa capacidade de entender melhor os outros seres, não apenas os seres humanos mas todos seres, se nos alegrarmos não só com os seres humanos mas com todos os outros seres da natureza, se formos capazes de entender as limitações e as realidades das nossas vidas, se formos capazes de fazer ações melhores e evitar ações piores e entendermos que aquilo que não nasce, não morre, estaremos entendendo as cinco sabedorias. Quando entendemos as cinco sabedorias naturalmente brota em nós um nível de lucidez, de compaixão e de amor por todos os seres. Isto constrói mundos melhores, Nós podemos entrar em crises e no meio das crises podemos construir mundos piores se nós nos tornarmos mais autocentrados, mais raivosos, mais apegados e avarentos e a partir disto manifestarmos orgulho, agressão, apego, indiferença, carência, raiva, rancor, ódio e medo. Estas seriam qualidades que vão produzir muito sofrimento. Assim, mundos melhores a gente constrói com software melhor. E ciclicamente, quando nós esquecemos disto e entramos num mundo autocentrado, tudo piora. A humanidade já passou por grandes crises, já passou por períodos melhores e agora seria um tempo em que tudo o que a gente entendeu poderia nos impulsionar na direção de um software melhor, uma forma melhor de produzir as nossas realidades.

O Budismo fala sobre a “Era da Degenerescência”. Por outro lado, aspiramos a chamada “Era de Aquário”.  Esta geração chegará a viver alguma delas?

– É muito provável que a gente já esteja vivendo isto de algum modo. Em algumas regiões geográficas, em alguns locais nós temos pessoas vivendo os infernos. Em outros locais temos pessoas vivendo aquilo que imaginavam como uma vida normal antes da pandemia. Noutros locais encontramos grupos que estão plantando dentro da visão agroflorestal, estão fazendo meditação, estão reciclando seu lixo, cuidando dos seus filhos, cuidando da sua saúde, imaginando como viver melhor no futuro, reduzindo suas necessidades, gerando simplicidade, apreciando a natureza, apreciando os outros seres e contemplando. Isto já seria um outro tempo, uma Era de Aquário. Eu acredito que todos os processos de transformação se dão deste modo: vão transformando uma região, depois outra região, e nós vamos aprendendo com uma experiência e outra e assim vamos avançando. É possível pessoas viverem mais próximas à natureza, ultrapassarem a visão financeira e adotarem visões ecológicas e espirituais. Colocarem isto como centro de suas vidas e viverem felizes. Então este já é o ideal da Era de Aquarius que se implantou e vai se ampliando aos poucos em várias direções.

O fato é que as visões mais elevadas são mais fortes do que as visões inferiores. As mais elevadas são mais consistentes, produzem felicidade, produzem bons resultados. As visões mais autocentradas produzem sofrimento e destruição maior ao seu redor. Então, com o tempo nós vamos entendendo que aquilo que é melhor é melhor. E que aquilo que é pior, é pior.

Quais suas recomendações para lidarmos melhor com toda esta pandemia e seus desdobramentos em termos de doenças, perdas, economia, lutos e desvairios?

– Neste momento com certeza o melhor é manter um ritmo de vida adequado, em que a gente tome sol, se movimente, faça exercícios, se alimente de forma equilibrada. Que a gente evite estressar o corpo ou produzir dificuldades para a própria saúde. Que a gente tente resolver os problemas básicos de saúde através da alimentação, do movimento, da meditação e do equilíbrio da nossa energia e das nossas emoções. Eu acredito que na medida em que a gente toma estes cuidados, a doença fica minimizada. Com respeito às perdas, deveríamos examinar não propriamente como perdas, mas como alterações daquilo que a gente considera normal. E, na medida em que há perdas, temos a oportunidade de criação e recriação das realidades, de nos refundarmos em novas realidades mais elevadas. Na medida em que aquilo que parecia muito rígido se altera, é possível a gente fazer outras coisas. Se reinventar. Aproveitar as perdas como forma de encarar a impermanência e a partir desta liberação da impermanência avançar na direção de construções melhores.

Com respeito à Economia, a essência da Economia é trazermos benefícios aos outros. Então todos os seres que tiverem a capacidade de gerar benefícios para os outros estarão dentro de uma Economia Ascendente, favorável. É importante entender a Economia como inseparável da compaixão e do benefício real que podemos trazer para os outros. A Economia está ligada exatamente à capacidade de produzir benefício e demandar menos. Com crise ou sem crise, nós andamos melhor se a gente demandar menos e oferecer o máximo.

Com respeito aos lutos – é algo muito profundo, porque se temos perdas humanas e parentes que morrem em meio a isto é sempre muito impactante. Por outro lado, é importante a gente entender dentro de uma perspectiva de que vida e morte são manifestação de uma vida que, por sua vez, está além de vida e morte. Nós não olhamos para os nossos parentes, para os nossos lutos pessoais, como o fim de tudo. Mas olhamos como uma etapa dentro de alguma coisa muito ampla no tempo ou, se a gente tiver a capacidade, entender que isto são configurações que se dão além do próprio tempo. São configurações que só quando tivermos um aprofundamento verdadeiro do sentido da vida e da existência da vida, além de vida e morte, é que nós podemos verdadeiramente acessar isto. Podemos colocar como objetivo que durante esta vida a gente consiga se aproximar destas visões muito elevadas que as múltiplas tradições religiosas têm, não apenas a tradição budista, mas as tradições xamânicas, as tradições dos povos originários e as várias tradições religiosas que de algum modo nos trazem esta compreensão da vida e de além da morte também.

Com relação aos desvairios, eu diria que este não seria um momento para alucinar, mas um momento em que a gente se sinta liberado de um cotidiano aflitivo aparentemente rígido e a gente entenda que a vida pode ser reinventada numa boa direção. A nossa loucura deve ser esta: reinventar a vida de uma forma livre, numa boa direção. Se a nossa mente neste momento se desorganiza e perde os referenciais, que a gente pare, respire com calma, se equilibre e gere os melhores sentimentos nas múltiplas direções. A gente entenda que todos os seres aspiram a felicidade e aspiram se livrar do sofrimento. Então a gente aspira que todos os seres encontrem a felicidade, encontrem as causas desta felicidade e que se livrem do sofrimento e das causas do sofrimento. Na medida em que olhamos nas várias direções para os outros seres, ultrapassando o limite do nosso próprio autocentramento. Neste momento a gente se cura da nossa loucura, da nossa aflição, da nossa angústia.

Temos boas oportunidades para nos reconstruir, praticar a compaixão e o amor em todas as direções, entendendo que a dor é inevitável e que todas as transformações produzem dor. A gente não planejou isto, mas o nosso desafio é tornar esta circunstância como está se apresentando como um dos referenciais a partir do qual nós vamos construir realidades melhores.

Budismo em números

As Quatro Nobres Verdades

– O Sofrimento existe

– O sofrimento tem causas

– É possível se livrar do sofrimento

– Há um caminho para isto

As Quatro Qualidades Incomensuráveis

Compaixão, Amor, Alegria, Equanimidade

As Cinco Sabedorias

Sabedoria do Espelho, Sabedoria da Igualdade, Sabedoria Discriminativa, Sabedoria da Causalidade, Sabedoria de Dharmata

As Seis Perfeições

Generosidade, Moralidade, Paz, Energia Constante, Concentração e Sabedoria


Fonte: CEBB – Centro de Estudos Budistas Bodisatva | Lama Padma

www.cebb.org.br

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